terça-feira, 19 de outubro de 2010

a galinha e a senhora

  A mesma mão que apanha o controle remoto para ligar a televisão, é usada para a morte. Seus olhos não ousam descolar do noticiário. A cada duas palavras, cinco mortes. De tão falso, ela finge um choro quase verdadeiro. Procura por todos os cantos do seu deserto interior, algum lugar úmido. Será que alguém assim não pode chorar?
  O coração está seco desde que completara 15 anos. Foi nesse dia que conheceu o único amor de sua vida. E que o perdeu, também. O pedido que ela fez, em vez de um chapéu decorado com uma pena colorida, foi crescer. Logo, perdeu todas as cores que existiam dentro dela. Secaram. Os olhos, que brilhavam como diamantes, ficaram tristes até o dia de sua morte, que ainda nem  havia acontecido. Não existia vida dentro dela.
  Depois de uma busca incansável, a senhora que assistia televisão disistiu de chorar. Não havia jeito. Ela estava despencando aos poucos da arvore mais alta que existe. Era uma folha seca. E perigava tombar antes mesmo do outono chegar.
  Desligou a televisão e foi preparar o almoço. Era a hora de todos os moradores do campo irem resgatar o ensopado do meio-dia. A velha senhora escolheu a galinha mais apetitosa de toda a fazenda e agarrou-a, firme, com as mesmas mãos que seguravam o controle remoto. Com as mesmas duas mãos que puxavam as lágrimas inexistentes das poucas nuvens que ainda haviam dentro dela. Achou melhor, depois de uma idéia não muito racional, cometer o assassinato na sua própria casa. No fundo ela morria de vergonha por praticar o crime na frente de tantas pessoas como ela. No fundo, onde ela estava para tombar, sentia-se o pior dos seres. Sentia-se como todos os outros criminosos que acabara de ver na televisão. Achava que isso diminuiria a culpa. E qual é a diferença de uma galinha para um ser humano?
  Chegou em casa. Sentou na poltrona mais confortável e começou a chorar. Há anos ela não conseguia chorar. Era o susto junto com a necessidade. Olhou nos olhos da pobre galinha, que já não acreditava na vida, e pôde se ver por dentro. Viu o medo. O ódio. Viu a falta de vida. E, principalmente, a morte.
  Antes de tombar, a folha seca, que cavara tanto o coração que achara um pouco de água, deciciu cometer o maior dos crimes. Esperou a noite cair por entre os campos e saiu pronta para o ultimo de todos os crimes que ela iria cometer na vida. Chegou na fazenda, onde os seres penados a olhavam com medo e com pena. Ela, em um ato de coragem e esperança colocou todas as galinhas dentro de seu carro quase sem cor, como ela, e fugiu para bem longe. Se alojou em uma nova cidade, e tratou as galinhas como se fossem parte dela própria. Colocou na cabeça que as deixaria morrer por natureza. Sem crimes. Sem armas. Sem mãos.

  Ela sabia que não poderia, com esse ato, salvar todos os seres  que são mortos sem razão nenhuma. Mas ela podia se salvar. Ela podia, com um pouco de água e cor, construir um bonito bosque encantado com flores e muita vida dentro dela.

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