domingo, 26 de dezembro de 2010

o escafandro e as borboletas

  Isabele chegou em casa faminta, e correu para a mesa que estava coberta com uma grande toalha bordada à mão. De longe ela havia observado um grande volume, e a primeira coisa que veio em mente foi "um bolo de chocolate!". Isabele estava suja dos pés à cabeça, pois era seu aniversário, e decidiu passá-lo brincando com as borboletas. No dia do nascimento de Isabele, enquanto sua mãe se distraía com o quê as pessoas falavam sobre a filha, a menina descobriu pela primeira vez o que significava estar viva. A janela estava aberta, e era o primeiro dia de primavera. As flores nasciam feito bolas de neve coloridas, mas bastava um vento um pouco mais bravo, que elas tombavam por entre o jardim e seus arbustos esverdeados. Foi num desses tombos floridos que uma flor em forma de 8 caiu e ganhou vida. Voou até o quarto de Isabele e pousou no seu nariz. Isabele deu o primeiro riso de sua vida. Sua mãe quis matar a borboleta, achando que fosse uma ameaça para a sua pequena donzela. Já o pai disse para deixar, ou caso contrário, compraria uma coleção inteira de borboletas de estimação e soltaria no quarto de Isabele. Os adultos começaram à conversar mais uma vez, e quando sua mãe olhou para ela, a borboleta havia sumido. Mas só um segundo, e onde foi parar?
  Mas voltando ao dia em que Isabele fez aniversário e comemorou com as borboletas, ela tirou a toalha da mesa desejando um grande bolo de aniversário. Quanta decepção. Havia apenas um escafandro embrulhado em papel de presente. Isabele colocou o seu presente da cabeça e fechou os olhos. Começou a girar. A casa estava caindo. O chão estava levitando. E Isabele? Isabele não estava.
  Algum tempo depois, a menina chegou à um bosque brilhante. Tudo o que ela via eram borboletas. Entravam nos olhos, no nariz, no céu da boca. Mas onde estava Isabele? Seu escafandro pesava um pouco mais leve e colorido naquele momento. "Eu só posso ser uma astronauta ou um mergulhadora do espaço" pensou a menina, desejando cair novamente no planeta do qual saíra.
  Depois desse dia, ninguém mais soube como Isabele conseguiu voltar para o seu quarto. Talvez ela nunca tenha saído de lá. Talvez ela nunca tenha estado lá. Mas Isabele teve muita sorte, quando ganhou um escafandro cheio de borboletas. Hoje em dia as pessoas costumam usar escafandros de nada e ficam cegos. Isabele ficou cega, mas ela ficou cega de borboletas.

sábado, 18 de dezembro de 2010

escute!

    Estou vendendo palavras meu caro Dom Casmurro. A avenida está movimentada hoje, não está? Eu acho que os exterrestres desistiram da encomenda que fizeram para hoje ao fim da tarde. Eles haviam me pedido para que lhes vendessem umas mil palavras, tudo de uma só vez, não é curioso? Esses humanos não perdem tempo mesmo, mal ponho os pés para fora de casa e você já está aqui, mendigando palavras. Você acha certo a poesia sair de outros miolos? Sua boca só servirá para o batom final, que no máximo caprichará no sotaque gélido dessas bandas do norte. Não fique aí parado, não olhe para o alto do palaque. Apenas suba, desabotoe os papéis e grite como um louco. Vaze a poesia por aí. Só não se esqueça de tudo que fiz por você, meu caro amigo. Não perca as contas e as pontas, não deixe de pensar que eles estão por aí. Porque você deve saber, senhor de chapéu negro, eu apenas troco as palavras. Eu troco todas as minhas palavras por todos os teus silêncios.


  Antes de exister a palavra, não existia o silêncio. E antes de existir o silêncio, só o silêncio existia. Silêncio. Silên. Silê. Si.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

o mundo de sabão

  Da luneta que havia no meu quarto, eu observava tudo ao meu redor. Do outro lado da rua, bem em frente à minha casa, havia um outro planeta. Ele parecia deserto e habitado por alguem muito sereno. O mais estranho desse planeta, é que vez por outra ele brilhava em tons de verde-azul, vermelho-laranja. Eu ficava caducando em idéias, e logo me deitava no jardim para tentar descobrir o mistério do planeta vizinho. Eu confesso que isso não era uma coisa muito fácil de se pensar.
  No dia seguinte lá estava eu novamente, com os olhos na luneta, à olhar para o outro lado da rua. Eu consegui ver, finalmente, movimento nesse tal planeta. Eu a vi, no mesmo instante que eu, espiando o lado de cá do nosso asfalto de estrelas. Ela levou um susto e se escondeu atrás dos arbustos de aquarela que ela havia decorado o quintal. Ficamos alí, observando o mundo do outro. Para mim, era intocável, porém acessivel o mundo da menina. Porém, para ela, o meu mundo era apenas admirável. E de muito longe. Eu realmente devo dizer que ela me agradou no exato momento em que descobriu que não poderia me invadir, nem fazer parte de mim.
  O relógio girou algumas centenas de vezes, e eu finalmente descobri. O mundo em que ela vivia poderia ser chamado do que fosse. Poderia nem ter nome, dependendo do tamanho. Ele poderia ser bonito e ter um jardim de papel. Mas ela, com toda a certeza, morava em uma bolha de sabão. Quem sabe ela não assoprou a bolha de sabão quando criança, e foi sugada para dentro da bolha? Talvez ela tenha caído para dentro, e nunca mais conseguiu escapar. Hoje eu apenas observo de longe o mundo da menina. Espero ansioso o dia em que eu possa lhe contar da minha descoberta. Talvez ela nem saiba onde vive, mas eu posso lhe dizer. Eu preciso avisá-la, antes que ela invente de plantar algumas flores na terra. Porque você sabe, não sabe? Quando nós vivemos em uma bolha de sabão, basta um descuido para que a bolha estoure. E para que nosso mundo desabe.

e dentro de mim, a guerra

  Hoje eu sou o general de mim mesmo. Os soldados estão perfilados ao lado direito do meu peito, um por um, dente por dente, olho por olho. Do outro lado do campo estão os adversários, que são meus mais fortes aliados ao mesmo tempo. Estou lutando comigo mesmo, isso acontece todo o tempo. Não sei exatamente qual é o motivo de todo esse tiroteio de mentira. Poderia inventar um motivo qualquer, mas uma guerra nunca tem um motivo. Cada soldado luta por um ideal próprio. Vê este correndo como um louco em circulos? Ele luta para morrer, quer apenas encontrar um bom motivo para não existir. Ele clama por um tiro no peito, pode ser um tiro de misericórdia, eu juro que ele não ficará triste por isso. E agora vê este que está pulando à beira do precipício? Esse quer apenas lutar contra a guerra. Ele pensa que guerrear contra a própria guerra não é fazê-la. Você consegue perdoa-lo por isso? O que eu quero dizer, é que cada pedaço de mim luta para sobreviver, porque no fundo todos nós estamos lutando para sobreviver o tempo inteiro. Estou lutando contra mim mesmo, quero perder e ganhar, chorar e sorrir, viver e morrer, e tudo ao mesmo tempo. Dentro de mim a guerra continua. Quero ser e não ser ao mesmo tempo. Eu devo ser blindado por dentro, caso contrário estaria completamente esburacado. E a blinadagem é tão forte, que ninguém consegue entrar dentro de mim. Pelo menos hoje a guerra continuará firme e forte, dentro de mim.