sexta-feira, 26 de novembro de 2010

só se for a dois

  A música começa lentamente, o piano vai se abrindo pelo jardim inteiro. Venta bastante, olhando de cima e atentamente. Ninguém costuma colocar as roupas para secar no varal quando está ventando muito. As pessoas vivem com medo de que as roupas voem para muito longe, e que nunca mais as encontrem. Eu estava, especialmente nesse dia, abandonado na janela de casa. Também estava velho e rasgado por dentro. A música começa à estourar pelo ar e lentamente vai me abrindo pelo jardim ao meio. Passa na minha frente um outro ser, era uma sapatilha. Ela parecia uma bailarina flutuando pelas beiradas do quintal. Eu olhava para ela triste. Mais uma vez o vento sacodiu a casa e levantou a doce sapatilha em voo alto. Foi subindo, subindo, e caiu encima do varal, presa pelo cadarço. Nessa hora a menininha que usava a sapatilha para levitar em pleno ballet apareceu, e me salvou a vida. Olhou para mim e depois para a sapatilha. Correu em minha direção tropeçando nos próprios passos e me agarrou firme em suas mãos. Parou por alguns segundo e disse: "Você está com uma carinha muito triste, vou lhe apresentar para minha doce sapatilha". Me carregou nas mãos até o varal solitário e me amarrou junto à sapatilha. Eu fiquei alí, olhando para ela sorrindo como uma princesa. A música agora já fazia parte de nós dois, e apenas se for à dois. Ainda estamos lá. O vento se foi, voltou, voou e o sol abriu. O tempo passou e os livros fecharam. E ainda estamos lá. Quando dois seres se encontram é díficil de separar, principalmente quando estão abraçados em braços de cadarço.

  Eu amo uma sapatilha, a princesa do meu jardim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário